domingo, abril 27, 2008

Memorias esquecidas I


“Valeu a pena? Tudo vale a pena
Quando a alma não é pequena.
Quem quiser passar alem do Bojador,
Tem de passar alem da dor
Deus ao mar o perigo e abismo deu
Mas foi nele que espelhou o céu”


P tinha, como de costume, aceite o convite para aquela festa de aniversário de uma amiga de infância. Seria o momento de rever aquelas mesmas caras que, anualmente cumpriam com prazer e zelo a peregrinação festiva a casa da amiga comum. Rostos que permaneciam ocultos o resto do ano e que, nessa noite se voltariam a revelar nesse antigo ritual de estar presente naquela ocasião.
Para ele, esta data tinha também um outro secreto aniversário a comemorar um outro tipo de nascimento que somente P sentia. Assim era desde aquela noite, assim haverá de ser até ao fim dos dias. Por muito solitária que seja a comemoração, no meio dos risos alheios, por muito dolorosa que seja recordar, será sempre um dia em que P, baixinho, diria do fundo da sua alma, para um fundo ainda mais fundo: Parabéns!
6 anos haviam passado desde aquela noite que a memória sempre se recusou a sepultar nos seus fétidos arquivos feitos de riso e choro, de luz e trevas, temperados com o pó sábio do tempo. Aquela noite que mudou para sempre a sua vida, o seu o modo de ver o mundo, de sentir-se a mesmo enquanto pessoa.
Foi pois numa distante (hoje a ausência e o vazio faz o tempo parecer distante, talvez por pensar sempre no tempo que não se fez próximo…) noite de Abril que P entrou naquela sala como já o tinha feito milhares de vezes, cumprindo o ritual social de cumprimentar quem estava e oferecer o habitual discurso de circunstância. Nesses passos, nessa hora, deu consigo mesmo defronte de uns desconhecidos olhos castanhos onde imediatamente se perdeu e que, anos passados haveria de jamais se encontrar.
Não eram uns olhos quaisquer. Eram daqueles olhos que iluminam o universo e que parecem querer abarcar o mundo num simples olhar. Um olhar que de fugidio nos impele a que o penetremos, que de assustado nos roga uma protecção.
Estavam os olhos incrustados num rosto não menos brilhante e de perfeitas formas, divididos por um nariz de traço fino e correcto onde por baixo assentava um par de lábios rubros a pedir um beijo, ocultando o sorriso que, de tão tímido, se tornava imensamente belo.
Sentiu-se pois P perder em tamanha beleza e, ao mesmo tempo, que dentro de si se despertava o reencontro com a outra metade que existe na vida e que todos buscamos e que somente a alguns lhe é dado conhecer.
Durante o resto da noite, P manteve uma discreta atenção sobre aquela que ia despontando luz pela sala, pela casa, pela vida. Poucas palavras proferiram, á razão inversa dos olhares trocados, que traduziam desejo e curiosidade.
A festa acabou e, quis o destino ou assim estava já escrito que saíssem juntos partilhando o primeiro silêncio que durou os breves momentos do descer da escada.
Nessa noite, P custou a adormecer tentando vislumbrar nos sonhos o sonho presenciado.

(Continuará…talvez…)

2 comentários:

Cristina Paulo disse...

Belíssima memória Maninho, que como todas as memórias nós sabemos que pertencem ao passado. E também sabemos que águas passadas não movem moinhos, e que os nossos moinhos precisam de continuar de velas bem erguidas alegremente movidas pelo vento errante...pois o Vento errante pode sempre trazer-nos presentes, que ao não encontrarem as telas brancas das velas se perdem em outras paragens que não as nossas.
Maninho, olhos no futuro. Deixa o passado morrer, não te prendas a ele.
Beijo no coração e não sei se os moinhso têm velas , mas tu sabes ao que eu me refiro lol

Anónimo disse...

O Navegante continua sua viagem! Será que chegou ao Bojador, tamanha é a que clama ser sua dor? De amor? Será que é comandante seguro de horizonte no olhar, ou afinal marinheiro sonhador, em quimeras de actor? Sem dúvida: de palavras belíssimo criador! Partir, ficar, lutar, que importa? Sempre: criar! Sempre: navegar!