
Castanho, de corpo médio, ganhou este nome (um dos vários que cada um lhe chama e a que ele responde alegremente, sendo este o seu modo de dar importância a quem lhe dá afecto disfarçado de um pedaço de comida) pela sua vasta pelagem escorrida desde o focinho á cauda. Apresenta um ar gingão de macho malandro e dominante mas capaz de ser o mais sensível dos companheiros, o melhor educado dos cavalheiros, deixando-se sempre para último, esperando pacientemente que Sorridente acabe de comer para, somente depois se contentar (sim, contentar, pois o seu ar é de permanente contentamento), com os despojos gastronómicos que sobrarem. Se sobrarem...
Sorridente foi mais consensualmente assim baptizada devido a sua característica de sorrir a quem lhe agrada (literalmente...), a quem lhe afaga o pêlo áspero, ou quem somente se digne a dar-lhe um pouco de pão. Também, não raras vezes a vi sorrir para o seu companheiro de aventuras e desventuras, numa ternura tocante, comovente.
Quis o Destino, que o Destino tem destas coisas, que este dois seres adoptassem o meu jardim e alpendre como sede da sua (qui ça feliz) existência. Por ali vão permanecendo, dormitando, ladrando inocentemente a quem passa, para logo, ao primeiro gesto de atenção e mimo, se desfazerem com rápidos e alegres abanar de cauda, esquecendo de imediato a momentânea zanga, ou somente reconhecendo uma alma boa, quem sabe.
Eu pago tamanha honra com comida e afecto. Mesmo assim, creio que a divida está longe de ser saldada tal é a quantidade de ensinamentos que estes dois fazem o favor de me transmitir. Curiosa contribuição canina para o crescimento de um homem, ser dito inteligente...se souber olhar para baixo...São algumas destas lições que gostaria de ir partilhando.
Cumplicidade:
Quando surgiram e adoptaram o jardim como porto de desabrigo, Castanho e Sorridente não eram mais que dois rafeiros abandonados pela sorte, ou, como aprendi depois, bafejados por ela, procurando comida e carinho.
Traziam espelhado no focinho mil traumas que os faziam fugir a uma festa mais brusca para logo de seguida virem ondulantes, pelo abanar das caudas, respondendo a um chamamento que lhes garantisse alimento, quer fosse um osso ou uma festa (que as festas também alimentam...).
Foram pois ficando e eu foi observando que cada um se tinha, em gestos, transformado no espelho do outro. Ambos guardavam a rua apartir do posto de vigia do meu jardim, ou o meu jardim apartir das árvores em frente. Os passos de um eram rapidamente seguidos pelo outro, as refeições eram momentos de partilha ou caso a comida não fosse suficiente, momentos em que Castanho olhava complacente o repasto da sua companheira.
Todos os dias me habituei a ser saudado pela manhã, ou quando regressava a casa, pelos dois, sem nunca competirem pelo meu carinho sincero, do mesmo modo que nunca competiam pela malga de comida que lhes era distribuída, pelas restantes pessoas que, pouco a pouco, iam conquistando pela rua.
Um belo dia, ao sair para trabalhar, estranhei que nenhum deles me visse saudar como era habito, apesar de ver Castanho com ar vigilante e embevecido debaixo de uns ramos do outro lado da rua. Rapidamente compreendi o que se passara. Tinha já descoberto como ler no olhar de um o que com o outro se passava. Debaixo desses ramos, numa cova a que poderia chamar lar, estava Sorridente, sorrindo, rodeada por uma prole de cachorros que alegremente de deleitavam mamavam. Nesse momento, pela primeira vez, li nos olhos destes Amigos, a felicidade de uma família.
Desde esse dia, e durante alguns que se seguiram, Castanho "obrigava" a que a comida fosse deixada junto a si e da sua companheira, guardando-a de estranhos, recebendo com afecto os conhecidos que iam, pouco a pouco visitando o resultado visível daquela cumplicidade a que poderia também chamar de amor.
Com eles aprendi que, mesmo tendo só as estrelas como tecto, a cumplicidade de um olhar ou a comunicação vocal, que jamais compreenderei, dois seres podem ser a imagem um do outro (Castanho tinha, entretanto, aprendido também a sorrir), mesmo que de dois rafeiros se tratem. Aprendi que é possível na diferença ser-se completado, que a qualquer aspecto gingão corresponde um sorriso reconfortante.
Perdão:
O tempo foi passando. Os dois companheiros eram já parte viva do jardim, habitantes da rua que tinham escolhido e os acolheu. Um estava um o outro seguia-o com o olhar ou correndo ladrando alegremente a algum estranho que passasse. Aquela família fazia já parte da minha vida, como qualquer outro ritual. Os cachorros tinha sido distribuídos pelos vizinhos que garantissem dar-lhes carinho e protecção, sendo como sementes que o vento dispersa e que continuaram o processo de disseminação da espécie e, neste caso, dos latidos ternos e alegres.
Ao olhar terno e complacente de Sorridente correspondia sempre Castanho com o seu ar malandro e esperto, mas também meigo e cavalheiro.
Aos dias seguiam-se as noites e ao sol, a chuva, mas a igualdade do tempo que passa, nada parecia afectar a vida normal destes dois. A cada abanar de cauda seguia-se um sorriso e um dizer "gosto de ti" na mais pura linguagem dos afectos caninos. Observar diariamente estes dois eram um divertido e reconfortante hino á natureza e á vida em si mesma, com todos os seus mistérios e variantes.
Um dia igual a tantos outros, a minha filha disse-me que já não via o Castanho há dias e estava preocupada. Pude ver nos olhos da (outrora) Sorridente, o desespero do abandono, sentindo-se perdida na, agora, imensidão do jardim. Os seus passos que tinham já sido leves e alegres, eram a sombra dessa luminosidade, vivida na companhia da sua alma gémea, que os cães, aprendi eu também a têm. De Castanho nem sombra, nem latido, nem abanar de cauda. Temi o pior. Que numa das suas aventuras em busca de um osso tivesse sido atropelado, ou até mesmo levado por alguém que poderia, facilmente ficar enternecido com o seu ar de fiel cão vadio.
Somente ali estava Sorridente. Seu sorriso tinha perdido brilho, mas não intenção, seu olhar fitava com esperança o final da rua, esperando o surgir daquele corpo cor de terra e sol no olhar. Passavam os dias e a resignação instalava-se, ate que, do mesmo modo que partira para destino somente por ele conhecido e jamais desvendado, vejo surgir o Castanho com o seu habitual ar gingão, sorrindo para a vida como se disso dependesse a sua própria existência (e aprendi que dependia...).
Para mais me espantar, Sorridente manteve-se imóvel, embora se lhe notasse no pêlo um sinal que oscilava entre a alegria contida e o alivio. Compreendi, nos dias que se seguiram, que havia uma distancia entre os dois, compreendi sinais de reprovação e vergonha, misturados com a mesma cumplicidade que se mantivera imutável. Sorridente mantinha um ar distante (se bem que observasse pelo canto do olho os movimentos do companheiro), Castanho, ia pouco a pouco aproximando-se, sorrindo, repetindo rituais que, mais que de conquista, eram de dedicação genuína.
O que se passou, desconheço, pois Deus não me deu o dom de poder entender a linguagem dos animais. Onde andou Castanho é um mistério a que não me é permitido aceder, sei somente que, hoje, Castanho e Sorridente são um casal novo na união de sempre. Vivem entre o jardim o o outro lado da rua, tendo como companhia a companhia um do outro, abrigados á luz do sol e das estrelas.
Aprendi, mesmo desconhecendo as razões, que há lugar para a reconciliação, que o amor, cumplicidade pouco tem a haver com instintos naturais, que o perdão, mais que possível, pode ser uma ponte difícil de atravessar, mas que a recompensa da chegada nos transforma em seres diferentes...pelo menos assim é nos cães!
Humildade:
Toda esta estória de Castanho e Sorridente é verdadeira. Qualquer parecença com figuras ou acontecimentos reais não é mera coincidência, são simplesmente aqueles acasos de que a vida é fertil e a que urge estar atento.
Pouco a pouco, observando dois meros cães vadios, sem pedigree nem pretensões para alem do desfrute da vida e da companhia de cada um, aprendi que, muitas vezes é preciso saber olhar para baixo. Aprendi que toda a obra da criação, se nos apresenta como um todo e que cada criatura nos pode ensinar uma lição.
Com estes Amigos aprendi a falar e a ler, a crescer como ser humano, mesmo tendo como professores dois cães vadios, que nada mais têm para oferecer que sorrisos e abanares de cauda. Aprendi que a minha condição de ser superior se perde na imensidão da inferioridade destes dois cães, quando observada de perto.
Acredito que Castanho e Sorridente têm cumprido a sua missão com nobreza e lealdade.
Muitas outras lições me têm ensinado mas que guardo para mim por não saber colocar em palavras escritas essas emoções.
Hoje já não habito a mesma casa nem partilho o jardim mas uma coisa tenho como certo: os cães também sorriem e choram, os cães também perdoam e se amam! No seu prolongado abanar de cauda, como quem sacode as agruras da vida.
Sorridente foi mais consensualmente assim baptizada devido a sua característica de sorrir a quem lhe agrada (literalmente...), a quem lhe afaga o pêlo áspero, ou quem somente se digne a dar-lhe um pouco de pão. Também, não raras vezes a vi sorrir para o seu companheiro de aventuras e desventuras, numa ternura tocante, comovente.
Quis o Destino, que o Destino tem destas coisas, que este dois seres adoptassem o meu jardim e alpendre como sede da sua (qui ça feliz) existência. Por ali vão permanecendo, dormitando, ladrando inocentemente a quem passa, para logo, ao primeiro gesto de atenção e mimo, se desfazerem com rápidos e alegres abanar de cauda, esquecendo de imediato a momentânea zanga, ou somente reconhecendo uma alma boa, quem sabe.
Eu pago tamanha honra com comida e afecto. Mesmo assim, creio que a divida está longe de ser saldada tal é a quantidade de ensinamentos que estes dois fazem o favor de me transmitir. Curiosa contribuição canina para o crescimento de um homem, ser dito inteligente...se souber olhar para baixo...São algumas destas lições que gostaria de ir partilhando.
Cumplicidade:
Quando surgiram e adoptaram o jardim como porto de desabrigo, Castanho e Sorridente não eram mais que dois rafeiros abandonados pela sorte, ou, como aprendi depois, bafejados por ela, procurando comida e carinho.
Traziam espelhado no focinho mil traumas que os faziam fugir a uma festa mais brusca para logo de seguida virem ondulantes, pelo abanar das caudas, respondendo a um chamamento que lhes garantisse alimento, quer fosse um osso ou uma festa (que as festas também alimentam...).
Foram pois ficando e eu foi observando que cada um se tinha, em gestos, transformado no espelho do outro. Ambos guardavam a rua apartir do posto de vigia do meu jardim, ou o meu jardim apartir das árvores em frente. Os passos de um eram rapidamente seguidos pelo outro, as refeições eram momentos de partilha ou caso a comida não fosse suficiente, momentos em que Castanho olhava complacente o repasto da sua companheira.
Todos os dias me habituei a ser saudado pela manhã, ou quando regressava a casa, pelos dois, sem nunca competirem pelo meu carinho sincero, do mesmo modo que nunca competiam pela malga de comida que lhes era distribuída, pelas restantes pessoas que, pouco a pouco, iam conquistando pela rua.
Um belo dia, ao sair para trabalhar, estranhei que nenhum deles me visse saudar como era habito, apesar de ver Castanho com ar vigilante e embevecido debaixo de uns ramos do outro lado da rua. Rapidamente compreendi o que se passara. Tinha já descoberto como ler no olhar de um o que com o outro se passava. Debaixo desses ramos, numa cova a que poderia chamar lar, estava Sorridente, sorrindo, rodeada por uma prole de cachorros que alegremente de deleitavam mamavam. Nesse momento, pela primeira vez, li nos olhos destes Amigos, a felicidade de uma família.
Desde esse dia, e durante alguns que se seguiram, Castanho "obrigava" a que a comida fosse deixada junto a si e da sua companheira, guardando-a de estranhos, recebendo com afecto os conhecidos que iam, pouco a pouco visitando o resultado visível daquela cumplicidade a que poderia também chamar de amor.
Com eles aprendi que, mesmo tendo só as estrelas como tecto, a cumplicidade de um olhar ou a comunicação vocal, que jamais compreenderei, dois seres podem ser a imagem um do outro (Castanho tinha, entretanto, aprendido também a sorrir), mesmo que de dois rafeiros se tratem. Aprendi que é possível na diferença ser-se completado, que a qualquer aspecto gingão corresponde um sorriso reconfortante.
Perdão:
O tempo foi passando. Os dois companheiros eram já parte viva do jardim, habitantes da rua que tinham escolhido e os acolheu. Um estava um o outro seguia-o com o olhar ou correndo ladrando alegremente a algum estranho que passasse. Aquela família fazia já parte da minha vida, como qualquer outro ritual. Os cachorros tinha sido distribuídos pelos vizinhos que garantissem dar-lhes carinho e protecção, sendo como sementes que o vento dispersa e que continuaram o processo de disseminação da espécie e, neste caso, dos latidos ternos e alegres.
Ao olhar terno e complacente de Sorridente correspondia sempre Castanho com o seu ar malandro e esperto, mas também meigo e cavalheiro.
Aos dias seguiam-se as noites e ao sol, a chuva, mas a igualdade do tempo que passa, nada parecia afectar a vida normal destes dois. A cada abanar de cauda seguia-se um sorriso e um dizer "gosto de ti" na mais pura linguagem dos afectos caninos. Observar diariamente estes dois eram um divertido e reconfortante hino á natureza e á vida em si mesma, com todos os seus mistérios e variantes.
Um dia igual a tantos outros, a minha filha disse-me que já não via o Castanho há dias e estava preocupada. Pude ver nos olhos da (outrora) Sorridente, o desespero do abandono, sentindo-se perdida na, agora, imensidão do jardim. Os seus passos que tinham já sido leves e alegres, eram a sombra dessa luminosidade, vivida na companhia da sua alma gémea, que os cães, aprendi eu também a têm. De Castanho nem sombra, nem latido, nem abanar de cauda. Temi o pior. Que numa das suas aventuras em busca de um osso tivesse sido atropelado, ou até mesmo levado por alguém que poderia, facilmente ficar enternecido com o seu ar de fiel cão vadio.
Somente ali estava Sorridente. Seu sorriso tinha perdido brilho, mas não intenção, seu olhar fitava com esperança o final da rua, esperando o surgir daquele corpo cor de terra e sol no olhar. Passavam os dias e a resignação instalava-se, ate que, do mesmo modo que partira para destino somente por ele conhecido e jamais desvendado, vejo surgir o Castanho com o seu habitual ar gingão, sorrindo para a vida como se disso dependesse a sua própria existência (e aprendi que dependia...).
Para mais me espantar, Sorridente manteve-se imóvel, embora se lhe notasse no pêlo um sinal que oscilava entre a alegria contida e o alivio. Compreendi, nos dias que se seguiram, que havia uma distancia entre os dois, compreendi sinais de reprovação e vergonha, misturados com a mesma cumplicidade que se mantivera imutável. Sorridente mantinha um ar distante (se bem que observasse pelo canto do olho os movimentos do companheiro), Castanho, ia pouco a pouco aproximando-se, sorrindo, repetindo rituais que, mais que de conquista, eram de dedicação genuína.
O que se passou, desconheço, pois Deus não me deu o dom de poder entender a linguagem dos animais. Onde andou Castanho é um mistério a que não me é permitido aceder, sei somente que, hoje, Castanho e Sorridente são um casal novo na união de sempre. Vivem entre o jardim o o outro lado da rua, tendo como companhia a companhia um do outro, abrigados á luz do sol e das estrelas.
Aprendi, mesmo desconhecendo as razões, que há lugar para a reconciliação, que o amor, cumplicidade pouco tem a haver com instintos naturais, que o perdão, mais que possível, pode ser uma ponte difícil de atravessar, mas que a recompensa da chegada nos transforma em seres diferentes...pelo menos assim é nos cães!
Humildade:
Toda esta estória de Castanho e Sorridente é verdadeira. Qualquer parecença com figuras ou acontecimentos reais não é mera coincidência, são simplesmente aqueles acasos de que a vida é fertil e a que urge estar atento.
Pouco a pouco, observando dois meros cães vadios, sem pedigree nem pretensões para alem do desfrute da vida e da companhia de cada um, aprendi que, muitas vezes é preciso saber olhar para baixo. Aprendi que toda a obra da criação, se nos apresenta como um todo e que cada criatura nos pode ensinar uma lição.
Com estes Amigos aprendi a falar e a ler, a crescer como ser humano, mesmo tendo como professores dois cães vadios, que nada mais têm para oferecer que sorrisos e abanares de cauda. Aprendi que a minha condição de ser superior se perde na imensidão da inferioridade destes dois cães, quando observada de perto.
Acredito que Castanho e Sorridente têm cumprido a sua missão com nobreza e lealdade.
Muitas outras lições me têm ensinado mas que guardo para mim por não saber colocar em palavras escritas essas emoções.
Hoje já não habito a mesma casa nem partilho o jardim mas uma coisa tenho como certo: os cães também sorriem e choram, os cães também perdoam e se amam! No seu prolongado abanar de cauda, como quem sacode as agruras da vida.
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