terça-feira, agosto 21, 2007

Lições de vida.

Castanho e Sorridente são dois desses exemplares da espécie canina que a natureza, por um capricho somente a ela permitido, fez nascer com uma beleza interior, pouco visível ao primeiro olhar desprevenido do viajante.
Castanho, de corpo médio, ganhou este nome (um dos vários que cada um lhe chama e a que ele responde alegremente, sendo este o seu modo de dar importância a quem lhe dá afecto disfarçado de um pedaço de comida) pela sua vasta pelagem escorrida desde o focinho á cauda. Apresenta um ar gingão de macho malandro e dominante mas capaz de ser o mais sensível dos companheiros, o melhor educado dos cavalheiros, deixando-se sempre para último, esperando pacientemente que Sorridente acabe de comer para, somente depois se contentar (sim, contentar, pois o seu ar é de permanente contentamento), com os despojos gastronómicos que sobrarem. Se sobrarem...
Sorridente foi mais consensualmente assim baptizada devido a sua característica de sorrir a quem lhe agrada (literalmente...), a quem lhe afaga o pêlo áspero, ou quem somente se digne a dar-lhe um pouco de pão. Também, não raras vezes a vi sorrir para o seu companheiro de aventuras e desventuras, numa ternura tocante, comovente.
Quis o Destino, que o Destino tem destas coisas, que este dois seres adoptassem o meu jardim e alpendre como sede da sua (qui ça feliz) existência. Por ali vão permanecendo, dormitando, ladrando inocentemente a quem passa, para logo, ao primeiro gesto de atenção e mimo, se desfazerem com rápidos e alegres abanar de cauda, esquecendo de imediato a momentânea zanga, ou somente reconhecendo uma alma boa, quem sabe.
Eu pago tamanha honra com comida e afecto. Mesmo assim, creio que a divida está longe de ser saldada tal é a quantidade de ensinamentos que estes dois fazem o favor de me transmitir. Curiosa contribuição canina para o crescimento de um homem, ser dito inteligente...se souber olhar para baixo...São algumas destas lições que gostaria de ir partilhando.

Cumplicidade:

Quando surgiram e adoptaram o jardim como porto de desabrigo, Castanho e Sorridente não eram mais que dois rafeiros abandonados pela sorte, ou, como aprendi depois, bafejados por ela, procurando comida e carinho.
Traziam espelhado no focinho mil traumas que os faziam fugir a uma festa mais brusca para logo de seguida virem ondulantes, pelo abanar das caudas, respondendo a um chamamento que lhes garantisse alimento, quer fosse um osso ou uma festa (que as festas também alimentam...).
Foram pois ficando e eu foi observando que cada um se tinha, em gestos, transformado no espelho do outro. Ambos guardavam a rua apartir do posto de vigia do meu jardim, ou o meu jardim apartir das árvores em frente. Os passos de um eram rapidamente seguidos pelo outro, as refeições eram momentos de partilha ou caso a comida não fosse suficiente, momentos em que Castanho olhava complacente o repasto da sua companheira.
Todos os dias me habituei a ser saudado pela manhã, ou quando regressava a casa, pelos dois, sem nunca competirem pelo meu carinho sincero, do mesmo modo que nunca competiam pela malga de comida que lhes era distribuída, pelas restantes pessoas que, pouco a pouco, iam conquistando pela rua.
Um belo dia, ao sair para trabalhar, estranhei que nenhum deles me visse saudar como era habito, apesar de ver Castanho com ar vigilante e embevecido debaixo de uns ramos do outro lado da rua. Rapidamente compreendi o que se passara. Tinha já descoberto como ler no olhar de um o que com o outro se passava. Debaixo desses ramos, numa cova a que poderia chamar lar, estava Sorridente, sorrindo, rodeada por uma prole de cachorros que alegremente de deleitavam mamavam. Nesse momento, pela primeira vez, li nos olhos destes Amigos, a felicidade de uma família.
Desde esse dia, e durante alguns que se seguiram, Castanho "obrigava" a que a comida fosse deixada junto a si e da sua companheira, guardando-a de estranhos, recebendo com afecto os conhecidos que iam, pouco a pouco visitando o resultado visível daquela cumplicidade a que poderia também chamar de amor.
Com eles aprendi que, mesmo tendo só as estrelas como tecto, a cumplicidade de um olhar ou a comunicação vocal, que jamais compreenderei, dois seres podem ser a imagem um do outro (Castanho tinha, entretanto, aprendido também a sorrir), mesmo que de dois rafeiros se tratem. Aprendi que é possível na diferença ser-se completado, que a qualquer aspecto gingão corresponde um sorriso reconfortante.

Perdão:

O tempo foi passando. Os dois companheiros eram já parte viva do jardim, habitantes da rua que tinham escolhido e os acolheu. Um estava um o outro seguia-o com o olhar ou correndo ladrando alegremente a algum estranho que passasse. Aquela família fazia já parte da minha vida, como qualquer outro ritual. Os cachorros tinha sido distribuídos pelos vizinhos que garantissem dar-lhes carinho e protecção, sendo como sementes que o vento dispersa e que continuaram o processo de disseminação da espécie e, neste caso, dos latidos ternos e alegres.
Ao olhar terno e complacente de Sorridente correspondia sempre Castanho com o seu ar malandro e esperto, mas também meigo e cavalheiro.
Aos dias seguiam-se as noites e ao sol, a chuva, mas a igualdade do tempo que passa, nada parecia afectar a vida normal destes dois. A cada abanar de cauda seguia-se um sorriso e um dizer "gosto de ti" na mais pura linguagem dos afectos caninos. Observar diariamente estes dois eram um divertido e reconfortante hino á natureza e á vida em si mesma, com todos os seus mistérios e variantes.
Um dia igual a tantos outros, a minha filha disse-me que já não via o Castanho há dias e estava preocupada. Pude ver nos olhos da (outrora) Sorridente, o desespero do abandono, sentindo-se perdida na, agora, imensidão do jardim. Os seus passos que tinham já sido leves e alegres, eram a sombra dessa luminosidade, vivida na companhia da sua alma gémea, que os cães, aprendi eu também a têm. De Castanho nem sombra, nem latido, nem abanar de cauda. Temi o pior. Que numa das suas aventuras em busca de um osso tivesse sido atropelado, ou até mesmo levado por alguém que poderia, facilmente ficar enternecido com o seu ar de fiel cão vadio.
Somente ali estava Sorridente. Seu sorriso tinha perdido brilho, mas não intenção, seu olhar fitava com esperança o final da rua, esperando o surgir daquele corpo cor de terra e sol no olhar. Passavam os dias e a resignação instalava-se, ate que, do mesmo modo que partira para destino somente por ele conhecido e jamais desvendado, vejo surgir o Castanho com o seu habitual ar gingão, sorrindo para a vida como se disso dependesse a sua própria existência (e aprendi que dependia...).
Para mais me espantar, Sorridente manteve-se imóvel, embora se lhe notasse no pêlo um sinal que oscilava entre a alegria contida e o alivio. Compreendi, nos dias que se seguiram, que havia uma distancia entre os dois, compreendi sinais de reprovação e vergonha, misturados com a mesma cumplicidade que se mantivera imutável. Sorridente mantinha um ar distante (se bem que observasse pelo canto do olho os movimentos do companheiro), Castanho, ia pouco a pouco aproximando-se, sorrindo, repetindo rituais que, mais que de conquista, eram de dedicação genuína.
O que se passou, desconheço, pois Deus não me deu o dom de poder entender a linguagem dos animais. Onde andou Castanho é um mistério a que não me é permitido aceder, sei somente que, hoje, Castanho e Sorridente são um casal novo na união de sempre. Vivem entre o jardim o o outro lado da rua, tendo como companhia a companhia um do outro, abrigados á luz do sol e das estrelas.
Aprendi, mesmo desconhecendo as razões, que há lugar para a reconciliação, que o amor, cumplicidade pouco tem a haver com instintos naturais, que o perdão, mais que possível, pode ser uma ponte difícil de atravessar, mas que a recompensa da chegada nos transforma em seres diferentes...pelo menos assim é nos cães!

Humildade:

Toda esta estória de Castanho e Sorridente é verdadeira. Qualquer parecença com figuras ou acontecimentos reais não é mera coincidência, são simplesmente aqueles acasos de que a vida é fertil e a que urge estar atento.
Pouco a pouco, observando dois meros cães vadios, sem pedigree nem pretensões para alem do desfrute da vida e da companhia de cada um, aprendi que, muitas vezes é preciso saber olhar para baixo. Aprendi que toda a obra da criação, se nos apresenta como um todo e que cada criatura nos pode ensinar uma lição.
Com estes Amigos aprendi a falar e a ler, a crescer como ser humano, mesmo tendo como professores dois cães vadios, que nada mais têm para oferecer que sorrisos e abanares de cauda. Aprendi que a minha condição de ser superior se perde na imensidão da inferioridade destes dois cães, quando observada de perto.
Acredito que Castanho e Sorridente têm cumprido a sua missão com nobreza e lealdade.
Muitas outras lições me têm ensinado mas que guardo para mim por não saber colocar em palavras escritas essas emoções.
Hoje já não habito a mesma casa nem partilho o jardim mas uma coisa tenho como certo: os cães também sorriem e choram, os cães também perdoam e se amam! No seu prolongado abanar de cauda, como quem sacode as agruras da vida.

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