quarta-feira, agosto 29, 2007

Contadora de Estórias

Ontem chamaram-me contador de Estórias, como quem profere um insulto! Como se escrever sentimentos não fosse somente um prolongamento de os sentir. Como se as palavras escritas não pudessem ser uma forma de gritar ou de afastar a recusa de uma partilha.
Ontem quiseram chamar-me contador de Estórias como quem inventa a própria vida as Estórias que conta. Não fiquei triste, fiquei contente com o involuntário elogio. Quem conta Estórias é porque tem um mundo para partilhar, um lado de criança inocente que se recusa a perder.
Hoje, agora, lembro aquela velha senhora a quem devo muito da minha imaginação, da paixão pelas palavras que nos matam a sede de sonhar acordado.
Diamantina, a quem carinhosamente todos chamávamos "Avó Tina", era uma dessas personagem que habitam o nosso imaginário e as memórias da nossa vida, sem nunca entendermos muito bem de onde surgiram nem como partiram, porque, afinal, um dia algo ou alguém nos mostra que não partiram. Fazem parte do barro de que se fazem as pessoas.
Diamantina não era, sanguiniamente da família apesar do titulo honorário de avó. Habituei-me na minha criancice ao ritual de Sabádo de a ir buscar a casa onde vivia na solidão da sua viuvez (talvez por isso tinha a companhia de uma imaginação progidiosa, nesses tempos em que a televisão pouco mais oferecia que musica e noticias). Tinha uma doença nas pernas que me impressionava e que fazia, com que os poucos metros que separavam a porta de casa do carro, fossem percorridos em tempo inversamente proporcional. Diamantina tinha por mim um especial carinho ao qual eu correspondia com um amor de neto, pegando-lhe na mão tendo a ilusão de a ajudar a suportar a sua pesada pena. Era também uma exímia cozinheira (apesar de já pouco poder fazer que a doença é invejosa) e uma ainda melhor contadora de Estórias.
Partíamos depois para casa dos meus avós para um almoço em família que eu devorava a correr sempre com o pensamento posto na tarde sentado aos pés da Avó Tina. Esses almoços electrizantes, onde se falava e ria e éramos felizes, onde se aproveitava para escutar o meu avó contar como tinha sido a manhã no café que possuía e que, embora fosse no Intendente, tinha sempre mantido a reputação de casa séria e abrigo de escritores.
Sentado no pequeno banco azul das Estórias, aos pés da velha senhora, esse lugar mágico, aprendi com ela a moldar plasticina como quem molda um pastel para servir um rei deste mundo. Tudo o que lhe pedia que fizesse, num desafio permanente, era executado com uma perfeição pueril, saída dos seus pequenos e afilados dedos desde pessoas, a animais, passando por barcos, rodas de leme, árvores e flores e tudo o que a imaginação do momento me ordenasse pedir.
O que me prendia verdadeiramente a Diamantina era a sua capacidade de inventar as mais fantásticas e puras Estórias e, depois as repetir, sem se enganar, ao longo do tempo. Com a minha Avó Tina, aprendi que contar Estórias é uma dádiva da imaginação de quem pouco mais tem para oferecer. Que não existe doença de pernas que nos impeça de correr por caminhos imaginários, conhecer mundos exclusivos e viver mil aventuras jamais reproduzíveis em nenhuma tela de cinema. Com Diamantina aprendi a sentir o brilho de uma lágrima, conheci lugares sem ódio nem pecado, descobri a minha princesa encantada, que viria a reencontrar anos mais tarde, numa noite de Abril, descobri demónios que a vida me iria obrigar a vencer. Enfim, com aquela anciã, aprendi a manter a criança dentro de mim e começando a ser homem.
Diamantina, um dia deixou de vir almoçar e eu deixei de a ir visitar a casa para lhe fazer companhia e ouvir Estórias (teria uns 17 anos...), tinha partido para a terra das fadas de que, tantas vezes me falara e onde as suas pernas poderiam ser finalmente livres.
Ontem, quando me chamaram contador de Estórias num involutario elogio, voltei a encontrar a doce Avó Tina, habitando esse lugar encantado que, afinal estava aqui bem perto, ali já, do outro lado do meu peito, bem no meio da argamassa que me moldou.

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