segunda-feira, agosto 20, 2007

Carta a um filho não nascido

Filho,

Escrevo-te estas linhas que talvez nunca vás ler ou compreender. Eu próprio tenho dificuldade em as entender.

Não nasceste fisicamente mas resides já no lugar da alma a ti reservado, nesse lugar chamado desejo que acalento. Sabes, filho, eu, este teu inexistente pai que te ama prova assim que o querer dar-te forma não é somente privilégio de mulher. Sou homem e o meu instinto, o amor que dentro de mim existe, e a ti é dedicado, há muito que cresceu, que te gerou.

Imaginei a noticia da tua chegada como a mais bela das revelações, sonhei os dias a ver-te crescer no seio daquela que tinha sido escolhida para te dar corpo. Para seres a forma visível de um amor, que não sendo perfeito (que nada na vida o é...) era puro, genuíno e grande. Um amor que, como uma semente, seria regado, cuidado, mesmo que, por vezes o tempo fosse adverso.

Contigo iríamos percorrer caminhos, ensinar-te o nome das coisas, ler-te poesia, ensinar-te a ser Homem a ser Pessoa. Com todos os meus defeitos mas com toda a minha dedicação. Contigo, a tua irmã e a tua mãe seriamos a luz que iluminaria os troços de trevas que a vida, por vezes nos traz.

Tudo isto foi por mim, desejado, sonhado e visto. Mas confesso que cometi o pecado do egoísmo. Imaginei para ti a mais bela das mães, a mais radiosa das mulheres que jamais amei. O meu amor por ti teria de ser reflexo desse outro amor. Foi magnânimo na escolha! Fui humilhado na derrota!

Hoje, filho, existes somente na gravidez da minha memória imaginada, enquanto aquela que desejava para nossa companheira de aventuras (e se a vida é uma aventura que irias adorar), partiu acossada com o medo de não ser feliz (em segredo te digo que o seria, se bem que em cada rosa existem espinhos). Sei que tive as minhas culpas, mas sei também que faltou amor, faltou sonhar, que a injustiça fez a sua mossa.

Filho, não quero, contudo, que penses que a culpa foi dela. Não, foi nossa! Não soubemos esquecer o que haveria para esquecer e lembrar, viver, os momentos bons que construímos. Perdemos a calma, talvez a esperança e hoje, nada mais sou que teu companheiro solitário na memória da vida. Foi minha por ter sonhado sonhos que somente aos deuses estão destinados...

Filho, talvez nunca vás ler estas linhas de lamento, talvez não passes de um sonho de grandeza como o foi tua mãe. Mas, ambos, tu e ela, serão para sempre parte indísociavel de mim. Um e outro caminharam de mão dada, nos recantos vazios da minha humana existência.

Um beijo
Teu pai.

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