quinta-feira, junho 28, 2007

Estória II




Luis era um desses velhos vagabundos, sem tecto nem chão a quem, contudo, a vida sorria pela simples graça que lhe achava. Diziam na vila que tinha o condão de trazer o sol na algibeira e dependura-lo em qualquer ramo de qualquer árvore enquanto conversava com todos, desde que houvesse assunto...ou um copo de vinho. Tudo isto diziam do velho Luis, mas eu, sinceramente, do sol pendurado nada sabia. Gostava isso sim de o escutar a falar na sua voz cansada de tantos caminhos percorridos.

Luis (sempre foi assim que se chamou a si mesmo) era um desses velhos com o alfabeto da vida escrito na cara e os espinhos dos caminhos percorridos cravados um a um na alma. No entanto, punha na sua voz a altivez de um rei. Em segredo eu pensava que o era de facto. O seu reino eram todos os caminhos que percorrera em busca nunca se soube de quê, seu palácio eram os palheiros onde dormia e se acoitava do tempo, seus banquetes as esmolas recolhidas em casa do pobre. Sim, que esmola de pobre vale bem mais que esmola de rico. Passava as tarde no largo, ora conversando com quem passa ora com o olhar perdido sabe-se lá porque caminhos.

Um dia, enchi-me de coragem e quis saber por onde era a viagem percorrida por seu olhar.

-Olá Luis, boa tarde, como vai a vida hoje?
-Igual igual, sempre igual, sempre.-disse sem me olhar.
-Luis, permita-me uma pergunta, se não quiser não responda mas tenho cá uma curiosidade...
-Diga, a curiosidade é o inicio da sabedoria.
-Reparo que quando não está acompanhado, fica aqui sentado como quem espera um não sei quê de nada. Não tem onde ir? Família?

Luis, pela primeira vez olhou para mim. Pude então reparar que seus olhos eram de um castanho profundo feito de muitas noites, muitas trevas. Fixou os seus nos meus e pude perceber o tamanho da sua alma, contar os seus espinhos.

-Reparas.te então...-disse para meu espanto. Sentia-me já perdido, desarmado.
-Sim-respondi a medo.
-Pois é verdade que espero algo muito concreto de nada...
-Não entendo-disse já meio arrependido da minha intromissão!
-Bom, eu conto-te. Foste o único que reparou, serás o único com quem partilho um segredo. Dito isto reparei que seus olhos brilhavam como se da génese do próprio sol se tratasse.
-Eu nem sempre fui este vagabundo que conheces. Nasci em berço de amor e casa rica, fui criado por uma mãe que me amava e um pai que, embora austero, brincava comigo e me ensinava a vida. Fui, de facto feliz! Cresci entre brincadeiras no pátio da casa e da escola.
Um dia, já crescido com uns 20 e tal anos conheci aquela que iria (pensava eu) ser a minha mulher. Descobri que estava comprometida mas isso não me impediu de beber da droga amarga da paixão. Esse liquido invisível que se te mete no coração e te gela por dentro, te tira a capacidade de raciocínio. Vi nela a mais bela das mulheres e como se da própria Medusa se tratasse, fui em pedra fui transformado.
Cresci como homem buscando nessa mulher a minha própria felicidade, tentando perder-me nos escuros caminhos os seus olhos, banhar-me no oiro manso dos seus cabelos.
Mas eu era já um vagabundo imundo e sujo pelas agruras da leviandade da vida. Pouco tinha sido amado e não sabia o que significava sê-lo, muito menos por um ser quase perfeito. A minha vida era uma triste colecção de braços vazios onde me perdia na ilusão de me encontrar.
Um dia, descobri finalmente esse oásis. Nos braços dela encontrei a paz e a calma mas não a soube reconhecer. A ela fiquei ligado e nela fundido como um metal, mas não sou ver nem ouvir. Nela morri e ressuscitei mil vezes sem saber. Tinha vivido nas trevas e a luz era-me desconhecida.
Foi assim que num desses dias a busquei e não mais a vi, não mais a senti, somente a sua imagem resistia dentro de mim como fantasma. Apartir desse dia tornei-me vagabundo por caminhos buscando e gritando seu nome. Queria dizer-lhe que a compreendia, pedir-lhe perdão e perdoar, queria finalmente descansar o meu corpo no seu, beber da fonte santa de seu seio.
Mas quanto mais a buscava, mais a perdia. Por mais caminhos que percorresse, somente obtinha a dor de um espinho cravado no peito. O vento trazia-me a sua voz, agora não mais como a doce musica que conhecia mas como um grito de raiva, um punhal que nos cega o pensamento. Deixei de viver e passei a esperar calmamente a morte que me redimisse da culpa.

Eu escutava Luis com os olhos rasos de maresia. Ouvia o seu ocultado lamento, sentia a sua solidão e a prisão perpetua a que estava condenado. Tinha-se calado e voltado ao seu estado de espera. Seus escuros olhos estavam agora fechados e deles saiam gotas de lágrimas onde cabiam todos os caminhos que percorrera. Soube nesse instante que aquele homem, que eu pensava livre, nada mais era era que a sombra de um prisioneiro, condenado a viver na espera. Fiquei em silencio partilhado com ele. Queria dar uma palavra de conforto mas nada se me surgia. Nós somos realmente seres estranho perante o sofrimento dos demais.

-Luis...ia a dizer algo mas ele fez um gesto para que partisse. Percebi que queria ficar só com as suas magoas e recordações. Era a sua forma de penitencia, ou a forma que tinha encontrado para pedir a Deus a paz que não soube manter, a oportunidade que lhe foi roubada.

Levantei-me e parti. Metros á frente algo me fez parar. Olhei para trás e vi Luis caído no chão.

Corri para ele e chamei-o sem resposta. Percebi de imediato o que acontecera...Nos seus lábios jazia um leve sorriso...
Estava perante um homem livre.

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