terça-feira, maio 29, 2007

Viagem de Cacilheiro para a outra margem


Era uma dessas ternas tardes de Verão em que o sol se compadecia dos homens e deixava a brisa do rio refrescar corpos e almas. Uma dessas tardes em tudo igual a todas as tarde em que viajava rumo á outra margem, naquele cacilheiro retirado de um qualquer filme dos anos 70.
Na sala de espera da estação da Trafaria, entretinha o tempo entre a observação dos outros passageiros enquanto meus dedos se entretinham com os teus num terno e despreocupado bailado.
Naquela sala de espera, o cansaço dava somente voz ao silencio, á dança os olhares, ao toque leve de duas mãos, as nossas. Tudo, naquele momento, o mundo, a espera, o Verão,...tudo, se resumia simplesmente ao toque dos dedos, á tua cabeça repousada ternamente no meu ombro.

Eu, que sou um ser de olhar fugidio, procurando outras diferenças humanas, como o pintor procura paisagens, vagueava entre a sensação de te ter e o observar distante dos outros seres. Sim, para mim, eu era sublime, retirado daquele cenário, como que espectador de uma peça neo-realista.

Assim estava quando meu olhar pousou (ou foi pousado, que para agora também não interessa) naquele casal idoso de figuras características. Um casal saído de um filme de Fellini. Apaticamente unido, pateticamente vestido de roupagens e sublimamente despido de preconconceitos. Assim os vi, assim os senti, assim me tocaram.

Ela, carregava em si mesma a dedicação aprendida na sua condição de mulher, ensinada por gerações e repetida como uma cartilha. Teria os seus 60 anos talvez transportados naquela bagagem simples que carregava, mas que afinal se traduzia em farnel e umas quantas peças de roupa. Na sua simplicidade, tinha um desprendido orgulho na roupa que vestia e que o mundo há muito deixara fora de moda na sua vertigem consumista. Ali estava, numa frágil firmeza aquela mulher, quem sabe se avó e mãe de alguém mas que, naquele momento, era-o daquele seu (?!) companheiro de viagens.

Ele, postura dedicada e delicada. Distantemente atento e de gestos de um falso terno enfado. Um homem nunca sabe totalmente compreender os gestos de uma mulher, aquele homem vivia alegremente divido entre a sua máscula postura e senil subserviência. Era nesta réstia de instante que aquele casal se tornava incontornavelmente uno: ela, dele serviçal; ele, dela inconscientemente dependente!
O homem vestia a dignidade do tempo, transparecida no seu exterior e transparecida do interior. Apesar do calor calmo, agasalhava-se talvez para remediar um frio que lhe vinha da própria carne.

Ali estavam os dois á nossa frente. Eu atentava aos seus gestos cúmplices, eles ignoravam nossa cumplicidade escancarada ao mundo. Dei por mim a beber-los com os olhos. A imaginar quem seriam, que teria sua vida de interessante para nos ensinar, para alem daquele mundo onde somente eles pareciam viver.

Chegou finalmente o barco que nos transportaria ao outro lado do rio, como se do próprio Orfeu nos tratássemos. A outra margem. Não seria, neste caso a outra margem da vida, mas tão somente a outra margem daquele rio outrora povoado de Tagides e hoje povoado de gente, que as Ninfas do Tejo, há muito desapareceram, quando desapareceu também a nossa capacidade de as sonhar e cantar. Enfim, somente mais um dos milhares de seres que povoaram nossas memórias de poetas, ou simplesmente os nossos pesadelos. O casal sentou-se á nossa frente para deleite e tortura da minha imaginação. Os meus dedos, somente os meus dedos continuavam a ser a ponte entre o meu mundo, aquele em que aos teus se unia, e o mundo da imaginação por onde eu, maneta, deambulava.

Observava naquele casal uma espécie de futuro. Como se Deus, naquela simples viagem de barco me tivesse decido mostrar a outra margem da vida num postal vivo. Imaginei-nos, imaginei-me, um dia, contigo a atravessar o mesmo rio, chegando á mesma margem, unidos no mesmo barco. Retirados do mundo, reis no nosso mundo de amparo. Imaginei-te a olhar por mim, a velar como dona e senhora do meu destino pelo qual eras também conduzida. A mim imaginei-me despreocupadamente atendo e sorvedor dos teus gestos. Adivinho dos teus pensamentos e comandante do barco da vida onde, no fundo tu ias ao leme. Imaginei-nos na doce ilusão de comandar-mos cada qual a vida de cada um, inconscientes que nada comandávamos de facto, e éramos docemente conduzidos pelo destino. Em tudo isto uma certeza: meus dedos seguiam bailando com os teus!

Deliciava-me a observar aqueles casuais companheiros de jornada ou, simplesmente, personagens de um filme antigo mas mil vezes repetido, mil vezes anunciado. Trocavam palavras somente por eles entendidas como se de um qualquer código se tratasse. E seus olhos pareciam que se completavam na presença dos outros. Bocas e olhos num dialogo que presenciava mas que não me era permitido decifrar, e imaginava... Imaginava o quanto meus olhos conversavam e se perdiam e se encontravam na escuridão luminosa dos teus, as vezes que minha boca se afundava na superficie deliciosa da tua. Imaginava os momentos em que em ti entrava e sentia o teu calor húmido como parte do meu próprio corpo. Assim imaginava, olhando aquele casal idoso (ah se eles soubessem do pecado da luxuria que minha mente via...) o passado, presente e futuro de outro alguém, de nós mesmos. Como se Deus nos desvendasse, por Graça o nosso próprio filme.

Meus dedos continuavam unidos aos teus como assim teria de ser. Nossos mundos em toque enquanto observa e aprendia outra realidade, enquanto a descobria tão humanamente nossa. Seria assim o nosso Outono da vida: cúmplices, amigos, amantes publicamente discretos (sim, aquele casal, a seu modo, ignorado certamente, fazia amor publicamente e somente os olhos de quem amasse o veria), socialmente correctos. Sim, seria ou será assim o Outono onde quero entrar, a verdadeira margem onde quero aportar numa qualquer tarde de um qualquer dia. Sim, esse estranho casal de estranhos assim mo ensinara, enquanto, vagarosamente, acariciava os teus dedos e tu dormitavas no meu ombro!

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