segunda-feira, agosto 27, 2007

O cão Bach

O "cão Bach" é um desses exemplares de Yorkshire Terrier em que, quis a vida e a natureza, permanecesse intacto no seu capital genético a coragem, a inteligência dos seus antepassados que fizeram deles trabalhadores e sagazes caçadores de ratos numa longínqua Inglaterra. Vive algures na grande urbe sendo fiel companheiro de uma melómana que, por isso o baptizou com o nome de compositor de renome.
Bach, sempre permaneceu indiferente ao status que o seu nome representava, preferindo, sempre que a vigilância atenta da dona permitia, escapulir se em brigas com outros membros da espécie, de modo democrático aliás, que Bach não fazia distinção de raças, brigando quer com um Pintcher anão ou um Braco Germânico (claro que neste caso, contava com a condescendência pacifica do seu companheiro de briga que, alçando a pata poderia demonstrar um completo desprezo pelo seu tamanho). É um cão com a sorte de ser amado (apesar do nome e das tentativas da dona para o adornar com aquelas roupas rídiculas que abomina) e ele, corresponde com um sem número de olhares de dizeres, que só quem o conhece vai compreendendo, como ele também compreende os nossos estados de alma, sempre pronto a uma lambidela que nos seque as lágrimas.
Conheci Bach faz alguns anos e, entre nós foi-se estabelecendo uma cumplicidade que faz dele um companheiro de viagem ou de lides domesticas (juro que nada o faz arredar pata de perto de mim enquanto cozinho. Interesse dirão alguns, eu acho que é pura amizade...). Sem trair a confiança da sua dona, Bach, é capaz de respeitar a liberdade que lhe dou quando o passeio sem amarras correspondendo a tal com a responsabilidade exigida, sem fugas nem brigas.
Confesso que tento, algumas vezes quebrar a rotina gastronómica do animal, deixando cair, distraidamente, pequenos pedaços de bacon que são, prontamente devorados antes que a nódoa se instale no tapete. A estes gestos corresponde o pequeno Bach com um sorrir de olhos apenas destinado aos cães que têm alma (mesmo que já lhe faltem alguns dentes).
No Sábado decidi pedir-lhe para ser meu companheiro de viagem até casa de meu pai que, por ser dotada de amplo jardim, seria um ideal presente para o cão poder exercitar as patas, avivar genes tentando descobrir ratos imaginários, correr sem olhar vigilante. Acedeu com alguma estranheza já que íamos os dois sozinhos o que, sem ser novidade, era uma aventura estranha. Onde estaria a sua amada dona? Para onde iria?
Pelo caminho fui-lhe contando sentires que guardo, amores desejados, amores perdidos, amores que quero correspondidos, sonhos enfim. A tudo, Bach, correspondia com um acenar de cauda intervalado com pequenas lambidelas na minha mão.
Chegados ao jardim, notei no seu focinho a felicidade que só a liberdade pode transmitir. Pode correr e desaparecer durante duas ou três horas vindo somente, a intervalos junto de mim para saber se ali estava e se ele poderia continuar as suas aventuras. Parecia de facto uma criança feliz a quem se tinha dado a liberdade de brincar no parque. A sua felicidade canidea, foi o meu humano contentamento. Não sei o que fez, não lho perguntei, notei somente o seu contentamento e relutância em regressar. Adormeceu no banco do carro, como uma criança cansada no final de um dia de brincadeira a mim, deu-me o prazer de lhe acariciar o pelo enquanto conduzia, mantendo-me desperto.
Chegados a casa e depois de o saciar com agua, que correr e imaginar ratos também dá sede, preparei-me para me deitar eis se não quando reparei que Bach se indispusera e tinha vomitado. Olhando para ele com a preocupação natural, reparei no seu olhar envergonhado e de quem pede perdão. Afagando-lhe a cabeça mostrei a minha condescendência e compreensão, ninguém tem culpa de uma repentina indisposição mesmo que provocada pela ingestão de comida de gato, algo que o seu hálito pestilento denunciava até do outro extremo da sua linhagem Britânica...
No dia seguinte, contei o sucedido a Joana, sua dona que aproveitou o facto para me relembrar pela enésima vez dos malefícios das alterações alimentares do pobre animal que me olhava com misto de pena e culpa. Tive de escutar novamente sobre os maléficos efeitos intestinais que tal teria, por certo no pobre animal. Estou certo que poderei hoje descortinar mais sobre a fragilidade moderna da flora intestinal de um Yorkshire Terrier que qualquer veterinário.
Bom, o que é certo é que, pela noite, a comida do gato, tinha já produzido o seu efeito laxante nas entranhas do bicho. Bach terminou o dia com um, direi eu, reconfortante banho e eu com mais um valente ralhete. Bach enquanto escutava e sentia a agua a lavar-lhe o pêlo, olho-me. Pude, claramente, distinguir um cúmplice piscar de um dos seus pequenos olhos. O dia tinha então valido a pena.

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