quarta-feira, agosto 29, 2007

Contadora de Estórias

Ontem chamaram-me contador de Estórias, como quem profere um insulto! Como se escrever sentimentos não fosse somente um prolongamento de os sentir. Como se as palavras escritas não pudessem ser uma forma de gritar ou de afastar a recusa de uma partilha.
Ontem quiseram chamar-me contador de Estórias como quem inventa a própria vida as Estórias que conta. Não fiquei triste, fiquei contente com o involuntário elogio. Quem conta Estórias é porque tem um mundo para partilhar, um lado de criança inocente que se recusa a perder.
Hoje, agora, lembro aquela velha senhora a quem devo muito da minha imaginação, da paixão pelas palavras que nos matam a sede de sonhar acordado.
Diamantina, a quem carinhosamente todos chamávamos "Avó Tina", era uma dessas personagem que habitam o nosso imaginário e as memórias da nossa vida, sem nunca entendermos muito bem de onde surgiram nem como partiram, porque, afinal, um dia algo ou alguém nos mostra que não partiram. Fazem parte do barro de que se fazem as pessoas.
Diamantina não era, sanguiniamente da família apesar do titulo honorário de avó. Habituei-me na minha criancice ao ritual de Sabádo de a ir buscar a casa onde vivia na solidão da sua viuvez (talvez por isso tinha a companhia de uma imaginação progidiosa, nesses tempos em que a televisão pouco mais oferecia que musica e noticias). Tinha uma doença nas pernas que me impressionava e que fazia, com que os poucos metros que separavam a porta de casa do carro, fossem percorridos em tempo inversamente proporcional. Diamantina tinha por mim um especial carinho ao qual eu correspondia com um amor de neto, pegando-lhe na mão tendo a ilusão de a ajudar a suportar a sua pesada pena. Era também uma exímia cozinheira (apesar de já pouco poder fazer que a doença é invejosa) e uma ainda melhor contadora de Estórias.
Partíamos depois para casa dos meus avós para um almoço em família que eu devorava a correr sempre com o pensamento posto na tarde sentado aos pés da Avó Tina. Esses almoços electrizantes, onde se falava e ria e éramos felizes, onde se aproveitava para escutar o meu avó contar como tinha sido a manhã no café que possuía e que, embora fosse no Intendente, tinha sempre mantido a reputação de casa séria e abrigo de escritores.
Sentado no pequeno banco azul das Estórias, aos pés da velha senhora, esse lugar mágico, aprendi com ela a moldar plasticina como quem molda um pastel para servir um rei deste mundo. Tudo o que lhe pedia que fizesse, num desafio permanente, era executado com uma perfeição pueril, saída dos seus pequenos e afilados dedos desde pessoas, a animais, passando por barcos, rodas de leme, árvores e flores e tudo o que a imaginação do momento me ordenasse pedir.
O que me prendia verdadeiramente a Diamantina era a sua capacidade de inventar as mais fantásticas e puras Estórias e, depois as repetir, sem se enganar, ao longo do tempo. Com a minha Avó Tina, aprendi que contar Estórias é uma dádiva da imaginação de quem pouco mais tem para oferecer. Que não existe doença de pernas que nos impeça de correr por caminhos imaginários, conhecer mundos exclusivos e viver mil aventuras jamais reproduzíveis em nenhuma tela de cinema. Com Diamantina aprendi a sentir o brilho de uma lágrima, conheci lugares sem ódio nem pecado, descobri a minha princesa encantada, que viria a reencontrar anos mais tarde, numa noite de Abril, descobri demónios que a vida me iria obrigar a vencer. Enfim, com aquela anciã, aprendi a manter a criança dentro de mim e começando a ser homem.
Diamantina, um dia deixou de vir almoçar e eu deixei de a ir visitar a casa para lhe fazer companhia e ouvir Estórias (teria uns 17 anos...), tinha partido para a terra das fadas de que, tantas vezes me falara e onde as suas pernas poderiam ser finalmente livres.
Ontem, quando me chamaram contador de Estórias num involutario elogio, voltei a encontrar a doce Avó Tina, habitando esse lugar encantado que, afinal estava aqui bem perto, ali já, do outro lado do meu peito, bem no meio da argamassa que me moldou.

terça-feira, agosto 28, 2007

Poema em tons de castanho

Estou com necessidade de escrever!
Hoje acordei e dei com o céu de um cinzento que nos neboliza as ideias.
Esta noite dormi naquela cama de sempre onde, de tão grande me perco, em intermináveis peregrinações
Passei a noite buscando um poema que me embalasse, um sentimento, um calor que me confortasse. Mas a noite tardou em cair sobre o meu corpo cansado e a minha alma doente.
Procurei inspiração nas árvores do jardim e nas suas folhas que dançavam ao vento. Busquei sentidos no Cristo que, complacente, me olha do fundo da minha cama, como tendo pena de mim.
Incapaz, contudo de se desprender da cruz e me vir pegar na mão e me mostrar o destino, como a uma criança num parque de diversões (como gostava do parque de diversões da minha infância). Mas Ele ali permanece imóvel, observando-me com aquele seu rosto de perdão e sangue.
Naveguei pelos recantos da memória tentando encontrar algo onde me ancorar, um porto seguro, ou simplesmente um canto manso.
Subitamente, sem pedir licença, que o sentir não tem essa educação, surgiu no recanto da saudade a visão de dois olhos castanhos, abertos ao mundo como dois portões escancarados de onde saía a mais clara das luzes. Duas janelas para um mundo que mil vezes imaginei e por onde correm mitologias várias.
Aí encontrei a inspiração para um poema perfeito, eu, pedaço de nada sem importância, e que imperfeito sou, desde que rasguei o ventre de minha mãe.
Eu, o Alberto que um dia sonhou poder aspirar ao alto da montanha, acabando por se estatelar por não saber caminhar ainda, ou por querer correr sem sentido, provocando o riso de quem passa. Eu, o ridículo que se julgou poder ter ciumes, quando nada lhe pertence. Eu o vil, capaz de pecados que se dizem sem o perdão dos homens e o gozo das mulheres. Encontrei assim a fonte de inspiração para o mais belo dos poemas.
Aquele mesmo que não escreverei pois sou analfabeto em poesia e iletrado por vocação, mas que o construirei e sentirei cá dentro deste corpo desfeito, desta alma enferma.
Esse mesmo, com a forma de dois grandes olhos castanhos e que se construirá com as letras puras do teu nome!

segunda-feira, agosto 27, 2007

O teu corpo (mais uma vez)



Ontem chegaste ao fim do dia cansada. Tínhamos percorrido toda a jornada correndo de um lado para o outro sem sentir a culpa do dia ser de descanso. Querias aproveitar o último fôlego das tuas férias e eu cada segundo de luz que a tua viva presença me dava. Sentir cada toque teu, cada pedaço de vida que o teu sorriso me insuflava.
Detivemo-nos nas lides domésticas mais do que gostaríamos. Eu limpando uma casa cujo meu sentir, comete o abusivo pecado de chamar lar e tu passando roupa, lutando contra os vincos como quem luta contra as marcas que a vida teima em deixar.
Quando nos fomos deitar, tarde para nós e cedo para os que se não amam, pediste-me que te massajasse as pernas doridas com um creme que te aliviasse o peso. Acedi com um prazer que ignorava o que se seguiu.
Dei comigo percorrendo com um misto de vigor e calma, as tuas pernas, descobri mais que uma simples massagem, descobri que minhas mão se fundiam nas tuas moléculas. O teu corpo, tornou-se o prolongamento do meu e assim me senti parte desse misto sublime que somos nós.
Adormeceste depois no meu ombro e as minhas lágrimas de felicidade deram-te um beijo de boa noite, por mim que já ali não estava. Tinha ficado, algures misturado na suavidade reconfortante da tua pele.

O cão Bach

O "cão Bach" é um desses exemplares de Yorkshire Terrier em que, quis a vida e a natureza, permanecesse intacto no seu capital genético a coragem, a inteligência dos seus antepassados que fizeram deles trabalhadores e sagazes caçadores de ratos numa longínqua Inglaterra. Vive algures na grande urbe sendo fiel companheiro de uma melómana que, por isso o baptizou com o nome de compositor de renome.
Bach, sempre permaneceu indiferente ao status que o seu nome representava, preferindo, sempre que a vigilância atenta da dona permitia, escapulir se em brigas com outros membros da espécie, de modo democrático aliás, que Bach não fazia distinção de raças, brigando quer com um Pintcher anão ou um Braco Germânico (claro que neste caso, contava com a condescendência pacifica do seu companheiro de briga que, alçando a pata poderia demonstrar um completo desprezo pelo seu tamanho). É um cão com a sorte de ser amado (apesar do nome e das tentativas da dona para o adornar com aquelas roupas rídiculas que abomina) e ele, corresponde com um sem número de olhares de dizeres, que só quem o conhece vai compreendendo, como ele também compreende os nossos estados de alma, sempre pronto a uma lambidela que nos seque as lágrimas.
Conheci Bach faz alguns anos e, entre nós foi-se estabelecendo uma cumplicidade que faz dele um companheiro de viagem ou de lides domesticas (juro que nada o faz arredar pata de perto de mim enquanto cozinho. Interesse dirão alguns, eu acho que é pura amizade...). Sem trair a confiança da sua dona, Bach, é capaz de respeitar a liberdade que lhe dou quando o passeio sem amarras correspondendo a tal com a responsabilidade exigida, sem fugas nem brigas.
Confesso que tento, algumas vezes quebrar a rotina gastronómica do animal, deixando cair, distraidamente, pequenos pedaços de bacon que são, prontamente devorados antes que a nódoa se instale no tapete. A estes gestos corresponde o pequeno Bach com um sorrir de olhos apenas destinado aos cães que têm alma (mesmo que já lhe faltem alguns dentes).
No Sábado decidi pedir-lhe para ser meu companheiro de viagem até casa de meu pai que, por ser dotada de amplo jardim, seria um ideal presente para o cão poder exercitar as patas, avivar genes tentando descobrir ratos imaginários, correr sem olhar vigilante. Acedeu com alguma estranheza já que íamos os dois sozinhos o que, sem ser novidade, era uma aventura estranha. Onde estaria a sua amada dona? Para onde iria?
Pelo caminho fui-lhe contando sentires que guardo, amores desejados, amores perdidos, amores que quero correspondidos, sonhos enfim. A tudo, Bach, correspondia com um acenar de cauda intervalado com pequenas lambidelas na minha mão.
Chegados ao jardim, notei no seu focinho a felicidade que só a liberdade pode transmitir. Pode correr e desaparecer durante duas ou três horas vindo somente, a intervalos junto de mim para saber se ali estava e se ele poderia continuar as suas aventuras. Parecia de facto uma criança feliz a quem se tinha dado a liberdade de brincar no parque. A sua felicidade canidea, foi o meu humano contentamento. Não sei o que fez, não lho perguntei, notei somente o seu contentamento e relutância em regressar. Adormeceu no banco do carro, como uma criança cansada no final de um dia de brincadeira a mim, deu-me o prazer de lhe acariciar o pelo enquanto conduzia, mantendo-me desperto.
Chegados a casa e depois de o saciar com agua, que correr e imaginar ratos também dá sede, preparei-me para me deitar eis se não quando reparei que Bach se indispusera e tinha vomitado. Olhando para ele com a preocupação natural, reparei no seu olhar envergonhado e de quem pede perdão. Afagando-lhe a cabeça mostrei a minha condescendência e compreensão, ninguém tem culpa de uma repentina indisposição mesmo que provocada pela ingestão de comida de gato, algo que o seu hálito pestilento denunciava até do outro extremo da sua linhagem Britânica...
No dia seguinte, contei o sucedido a Joana, sua dona que aproveitou o facto para me relembrar pela enésima vez dos malefícios das alterações alimentares do pobre animal que me olhava com misto de pena e culpa. Tive de escutar novamente sobre os maléficos efeitos intestinais que tal teria, por certo no pobre animal. Estou certo que poderei hoje descortinar mais sobre a fragilidade moderna da flora intestinal de um Yorkshire Terrier que qualquer veterinário.
Bom, o que é certo é que, pela noite, a comida do gato, tinha já produzido o seu efeito laxante nas entranhas do bicho. Bach terminou o dia com um, direi eu, reconfortante banho e eu com mais um valente ralhete. Bach enquanto escutava e sentia a agua a lavar-lhe o pêlo, olho-me. Pude, claramente, distinguir um cúmplice piscar de um dos seus pequenos olhos. O dia tinha então valido a pena.

A Panela

Este fim-de-semana tomei conhecimento, se bem que de indirecta forma de uma das maravilhas da tecnologia alemã. Não, não se trata de um carro mas de uma versão moderna de uma panela onde, segundo me apercebi, cabe uma cozinha inteira, sem descontar mesmo a própria cozinheira e, imagine-se, o gato que nos habituamos a ver nas cozinhas de antanho, deambulando em busca de uma restea de comida caída da bancada.
Segundo me foi descrito com um quase contagiante entusiasmo, o dito aparelho é dotado da mais diversificada capacidade culinária, podendo confeccionar praticamente tudo, desde gelados a tripas à moda do Porto (digam lá se estes Germânicos não pensam em tudo...?), em tempo recorde. No final do trabalho, ainda tem a capacidade, qual gato de que falava antes, de se lavar sozinha.
Foi-me descrito, que na demonstração, a dita geringonça, Bimby de seu nome (reservo-me a comentários maldosos sobre tal nome...), a bendita, foi capaz de produzir um delicioso gelado a partir de um pêssego e de uma maçã, uma estonteante limonada a partir de um limão inteiro e, para terminar a sua fantástica performance, uma lasanha. Tudo isto em escassos minutos.
Fiquei, num primeiro momento, em êxtase por tal invento libertador das donas de casa, condenadas a horas intermináveis de volta das panelas antigas e, depois do trabalho terminado, de roda dos aspectos higiénicos de limpeza da cozinha e respectivas alfaias culinárias. Estaríamos perante uma nova revolução feminista. Imaginava já, manifestações onde seriam destruídos, desta vez, não soutiens, mas trens de cozinha, símbolos acabados da escravatura caseira da mulher moderna.
Depois de apurada reflexão decidi que estávamos perante, não de uma maravilha libertadora do engenho humano, mas de um completo atentado à sua capacidade criadora.
Imaginei, sem dificuldade, Picasso, na posse de uma máquina idêntica, oferecendo-lhe tinta branca e preta e escrevendo num ecrã programático a palavra "Guernica"... Será que hoje nos poderíamos deleitar com a inimaginável obra do mestre? Será que poderíamos sentir, perante a tela o horror do bombardeamento da cidade pela aviação Alemã? Seria possível "ouvir" os gritos gravados naquela impressionante criação? Não, jamais.
Pensava tudo isto enquanto me debatia com a tentativa alquímica de produzir um bacalhau à Brás a partir de um conjunto de ingredientes prévia e cuidadosamente seleccionados. Ia cozendo as lascas do peixe e picando a cebola e alho, imaginado os passos que teria de seguir para que a minha obra elevasse as papilas da minha boca e os ácidos do meu estômago. Depois poderia avaliar do sucesso ou fracasso (como foi o caso) do mesmo, aprendendo com o velho método de tentativa e erro, a evoluir nessa antiga e nobre arte de cozinhar. Evoluir, tudo se resume, no final a isto!
Meditava que cozinhar é o mais próximo que podemos aspirar, nós, os comuns, aos processos de alquimia da idade média. Buscando a partir de ingredientes isolados, o ouro de uma mescla de sabores que nos encham a alma e nos despertem os sentidos (curiosamente, da alquimia, surgiram algumas técnicas hoje utilizadas diariamente nas cozinhas de todo o mundo, como por exemplo o conhecido "banho Maria". Talvez dentro de anos tenhamos um banho "Bimby"...), no prazer que dá ver surgir a "obra", que pode ser um simples ovo estrelado. Confeccionar um prato de comida é como imaginar, fazer e gerar um filho (perdoem-me se isto vos parecer um pouco antropofágico. Os filhos não se comem...apesar de, algumas vezes, depois de crescerem, nos interrogarmos porque não o fizemos em devido tempo...). Primeiro imaginamos como vai ser, que tipo de pitéu desejamos nesse dia, assim como imaginamos se preferimos que o rebento seja menino ou menina, louro ou moreno, etc. Seguidamente buscamos, cuidadosa e afincadamente os ingredientes que iram compor a obra, que é como quem diz a mãe que o há-de gerar. Finalmente construímos o ambiente de criação dispondo na bancada da cozinha todo o que precisamos para a obra que vai nascer, do mesmo modo que preparamos o ambiente para gerar o fruto da razão e do coração.
Então, perante tudo isto, aplicamos o mais precioso dos ingredientes que maquina nenhuma é capaz de criar – Amor. Disse um dia o poeta (ao que consta sem auxilio de engenho nenhum artificial) que a obra é o resultado do sonho e eu imagino que tal seja verdade, quer para um filho como para um cozido à Portuguesa (perdoem-me mas não sei que conhecimento têm os alemães acerca do cozido à Portuguesa...), e isto está vedado a circuitos eléctricos e programáveis de uma qualquer máquina, por muito...Bimby que seja.
Não, não me roubaram o prazer de ir misturando ervas e molhos, de imaginar o esplendor final do processo criativo (que no meu caso é limitado), de ir misturando todas as pitadas de sabores com o amor posto na confecção, sentir o prazer dos meus amigos a deliciarem-se com o meu trabalho, transformando o meu no seu prazer. Recuso dar uma invenção qualquer os louros dos elogios no final do repasto e do convívio que serviu para unir gerações.
Não busco estrelas Michelin (Quantas terá a "coisa"?), procuro somente o prazer da cozinha, como outrora buscavam os sábios, o prazer do laboratório. Construir sabores, exercitar os sentidos e a mente, misturando tudo com pitadas de afecto.
Pois, assim sendo está decidido, não cederei, neste campo aos avanços da técnica! Poderei ser antiquado mas ao menos saberei reconhecer nos olhares alheios o fruto do meu esforço em esgares de aprovação ou condescendência. Depois, alguém que arrume a cozinha se faz favor que o guerreiro merece descanso.

sexta-feira, agosto 24, 2007

Abril


Foi em Abril que renasci com um olhar de luz.
Numa noite em que a chuva me lavava da lama do caminho.

tinham dito que Abril era tempo de liberdade
Não sabia que era mês de destino em que se pode mudar uma vida.

Hoje, em Abril, para mim não há cravos nem rosas,
Existe simplesmente um jardim, com uma Fonte Santa,
Onde livremente me prendo, e onde em morte vivo.

Que esse jardim seja minha campa,
E da Fonte jorre a agua benta que me leve desta vida.

Mas não me roubem a luz que em se Abril acendeu.

quinta-feira, agosto 23, 2007

Teu corpo



Do teu corpo fiz minha cama
Onde descansei das agruras da jornada

Da tua pele fiz meu agasalho onde me aqueci
Essa onde me deitei em noites frias de Inverno

Em teu ventre me abriguei,
Quando o medo era maior que a coragem.

Agora que, nesta vida ando perdido e só,
Buscando novamente esse descanso
Sinto em mim a imensa dor de quem é amputado,
Do lado mais puro da alma!

terça-feira, agosto 21, 2007

Afectos-Uma reflexão

Há uns tempos confrontei-me com uma dessas realidades que nos preenche a existência desde os seus primórdios. Convivemos com ela como se convive com o facto de respirar, até que, um dia, nos surge a incomoda pergunta: Porquê?
me tinham comentado que tinha mais amigas que amigos mas nunca liguei. Era assim como sempre foi, não queria dizer que as minhas amigas fossem uma reserva de futuras namoradas ou relações fortuitas, eram amigas e pronto.
Comecei pois a pensar nisso. Primeiro tentei rever mentalmente quem eram aquelas a quem chamava e considerava amigas. Queria descobrir um padrão "cientifico" que me desse uma explicação, uma linha condutora que as unisse, nada. Umas são louras, outras morenas, umas ainda novas outras no Outono da vida, embora com a experiência de todas as estações. Nada pois me indicava algo palpável, era assim e pronto!
No entanto, a falta de respostas não me bastava. Queria saber mais de mim, saber o porquê de emoções e comportamentos, só assim poderia cumprir o que de mim era, por mim, esperado: crescer!
Decidi olhar o caso ao contrário, ver quem eram os meus amigos homens. Analisar as suas díspares personalidades, gostos e comportamentos. Pensar o que me ligava a eles fazendo com que fossem naturalmente, por mim, considerados como companheiros de vida.
Foi então que descobri um ponto comum em todos aqueles que estimo, sem dependência de género: a sua capacidade de demonstrar afectos.
No caso das mulheres, poder-se-á dizer que tal é natural. A mulher é, suposta e culturalmente um ser mais dedicado á demonstração de emoções. A mulher chora, a mulher ri com gosto, a mulher tem gestos maternais só por si mesma compreendidos. Nada se compara ao toque e olhar de uma mulher (e então se for A mulher que amamos...). Estórias há de homens clamarem pela mãe, pela esposa ou por outra qualquer mulher, no seus últimos suspiros de vida, como se o conforto feminino fosse o melhor dos veículos condutores ao paraíso. Tudo isto é verdade na generalidade das mulheres (sim, que as há também, de um pedaço de gelo, esculpidas. Mas dessas não rezam as lendas!) mas e os homens?
Descobri que todos eles, nas suas diferenças, são pessoas que não têm medo de expressar um afecto, de me cumprimentar com um beijo ou um abraço, sem que isso ponha em causa a sua masculinidade. São pessoas que dão valor a um poema, a um pôr do sol ou a uma flor, que sabem dar valor ao simples da vida.
Descobri pois que o meu padrão de relações nada tem a ver com sexo, tem a ver com atitude perante a humanidade. Gosto de quem saiba gostar, de quem saiba escutar, de quem prefira salvar que condenar, sem abdicar de dar uma opinião própria. Que saiba o valor de uma lágrima sentida, que entenda um olhar. Gosto de quem não tenha medo de dizer "amo-te" e não me faça parecer ridículo por o escutar. Gosto do toque de um abraço reconfortante ou de uma palmada nas costas, de quem, como eu, não tenha medo de chorar num filme. Enfim gosto da humanidade sentida.
Descobri pois o meu padrão: sem género, mas com uma alma que preencha o ser, tenha capacidade de transbordar e inundar os outros. È que isto, de facto, não tem sexo!

Lições de vida.

Castanho e Sorridente são dois desses exemplares da espécie canina que a natureza, por um capricho somente a ela permitido, fez nascer com uma beleza interior, pouco visível ao primeiro olhar desprevenido do viajante.
Castanho, de corpo médio, ganhou este nome (um dos vários que cada um lhe chama e a que ele responde alegremente, sendo este o seu modo de dar importância a quem lhe dá afecto disfarçado de um pedaço de comida) pela sua vasta pelagem escorrida desde o focinho á cauda. Apresenta um ar gingão de macho malandro e dominante mas capaz de ser o mais sensível dos companheiros, o melhor educado dos cavalheiros, deixando-se sempre para último, esperando pacientemente que Sorridente acabe de comer para, somente depois se contentar (sim, contentar, pois o seu ar é de permanente contentamento), com os despojos gastronómicos que sobrarem. Se sobrarem...
Sorridente foi mais consensualmente assim baptizada devido a sua característica de sorrir a quem lhe agrada (literalmente...), a quem lhe afaga o pêlo áspero, ou quem somente se digne a dar-lhe um pouco de pão. Também, não raras vezes a vi sorrir para o seu companheiro de aventuras e desventuras, numa ternura tocante, comovente.
Quis o Destino, que o Destino tem destas coisas, que este dois seres adoptassem o meu jardim e alpendre como sede da sua (qui ça feliz) existência. Por ali vão permanecendo, dormitando, ladrando inocentemente a quem passa, para logo, ao primeiro gesto de atenção e mimo, se desfazerem com rápidos e alegres abanar de cauda, esquecendo de imediato a momentânea zanga, ou somente reconhecendo uma alma boa, quem sabe.
Eu pago tamanha honra com comida e afecto. Mesmo assim, creio que a divida está longe de ser saldada tal é a quantidade de ensinamentos que estes dois fazem o favor de me transmitir. Curiosa contribuição canina para o crescimento de um homem, ser dito inteligente...se souber olhar para baixo...São algumas destas lições que gostaria de ir partilhando.

Cumplicidade:

Quando surgiram e adoptaram o jardim como porto de desabrigo, Castanho e Sorridente não eram mais que dois rafeiros abandonados pela sorte, ou, como aprendi depois, bafejados por ela, procurando comida e carinho.
Traziam espelhado no focinho mil traumas que os faziam fugir a uma festa mais brusca para logo de seguida virem ondulantes, pelo abanar das caudas, respondendo a um chamamento que lhes garantisse alimento, quer fosse um osso ou uma festa (que as festas também alimentam...).
Foram pois ficando e eu foi observando que cada um se tinha, em gestos, transformado no espelho do outro. Ambos guardavam a rua apartir do posto de vigia do meu jardim, ou o meu jardim apartir das árvores em frente. Os passos de um eram rapidamente seguidos pelo outro, as refeições eram momentos de partilha ou caso a comida não fosse suficiente, momentos em que Castanho olhava complacente o repasto da sua companheira.
Todos os dias me habituei a ser saudado pela manhã, ou quando regressava a casa, pelos dois, sem nunca competirem pelo meu carinho sincero, do mesmo modo que nunca competiam pela malga de comida que lhes era distribuída, pelas restantes pessoas que, pouco a pouco, iam conquistando pela rua.
Um belo dia, ao sair para trabalhar, estranhei que nenhum deles me visse saudar como era habito, apesar de ver Castanho com ar vigilante e embevecido debaixo de uns ramos do outro lado da rua. Rapidamente compreendi o que se passara. Tinha já descoberto como ler no olhar de um o que com o outro se passava. Debaixo desses ramos, numa cova a que poderia chamar lar, estava Sorridente, sorrindo, rodeada por uma prole de cachorros que alegremente de deleitavam mamavam. Nesse momento, pela primeira vez, li nos olhos destes Amigos, a felicidade de uma família.
Desde esse dia, e durante alguns que se seguiram, Castanho "obrigava" a que a comida fosse deixada junto a si e da sua companheira, guardando-a de estranhos, recebendo com afecto os conhecidos que iam, pouco a pouco visitando o resultado visível daquela cumplicidade a que poderia também chamar de amor.
Com eles aprendi que, mesmo tendo só as estrelas como tecto, a cumplicidade de um olhar ou a comunicação vocal, que jamais compreenderei, dois seres podem ser a imagem um do outro (Castanho tinha, entretanto, aprendido também a sorrir), mesmo que de dois rafeiros se tratem. Aprendi que é possível na diferença ser-se completado, que a qualquer aspecto gingão corresponde um sorriso reconfortante.

Perdão:

O tempo foi passando. Os dois companheiros eram já parte viva do jardim, habitantes da rua que tinham escolhido e os acolheu. Um estava um o outro seguia-o com o olhar ou correndo ladrando alegremente a algum estranho que passasse. Aquela família fazia já parte da minha vida, como qualquer outro ritual. Os cachorros tinha sido distribuídos pelos vizinhos que garantissem dar-lhes carinho e protecção, sendo como sementes que o vento dispersa e que continuaram o processo de disseminação da espécie e, neste caso, dos latidos ternos e alegres.
Ao olhar terno e complacente de Sorridente correspondia sempre Castanho com o seu ar malandro e esperto, mas também meigo e cavalheiro.
Aos dias seguiam-se as noites e ao sol, a chuva, mas a igualdade do tempo que passa, nada parecia afectar a vida normal destes dois. A cada abanar de cauda seguia-se um sorriso e um dizer "gosto de ti" na mais pura linguagem dos afectos caninos. Observar diariamente estes dois eram um divertido e reconfortante hino á natureza e á vida em si mesma, com todos os seus mistérios e variantes.
Um dia igual a tantos outros, a minha filha disse-me que já não via o Castanho há dias e estava preocupada. Pude ver nos olhos da (outrora) Sorridente, o desespero do abandono, sentindo-se perdida na, agora, imensidão do jardim. Os seus passos que tinham já sido leves e alegres, eram a sombra dessa luminosidade, vivida na companhia da sua alma gémea, que os cães, aprendi eu também a têm. De Castanho nem sombra, nem latido, nem abanar de cauda. Temi o pior. Que numa das suas aventuras em busca de um osso tivesse sido atropelado, ou até mesmo levado por alguém que poderia, facilmente ficar enternecido com o seu ar de fiel cão vadio.
Somente ali estava Sorridente. Seu sorriso tinha perdido brilho, mas não intenção, seu olhar fitava com esperança o final da rua, esperando o surgir daquele corpo cor de terra e sol no olhar. Passavam os dias e a resignação instalava-se, ate que, do mesmo modo que partira para destino somente por ele conhecido e jamais desvendado, vejo surgir o Castanho com o seu habitual ar gingão, sorrindo para a vida como se disso dependesse a sua própria existência (e aprendi que dependia...).
Para mais me espantar, Sorridente manteve-se imóvel, embora se lhe notasse no pêlo um sinal que oscilava entre a alegria contida e o alivio. Compreendi, nos dias que se seguiram, que havia uma distancia entre os dois, compreendi sinais de reprovação e vergonha, misturados com a mesma cumplicidade que se mantivera imutável. Sorridente mantinha um ar distante (se bem que observasse pelo canto do olho os movimentos do companheiro), Castanho, ia pouco a pouco aproximando-se, sorrindo, repetindo rituais que, mais que de conquista, eram de dedicação genuína.
O que se passou, desconheço, pois Deus não me deu o dom de poder entender a linguagem dos animais. Onde andou Castanho é um mistério a que não me é permitido aceder, sei somente que, hoje, Castanho e Sorridente são um casal novo na união de sempre. Vivem entre o jardim o o outro lado da rua, tendo como companhia a companhia um do outro, abrigados á luz do sol e das estrelas.
Aprendi, mesmo desconhecendo as razões, que há lugar para a reconciliação, que o amor, cumplicidade pouco tem a haver com instintos naturais, que o perdão, mais que possível, pode ser uma ponte difícil de atravessar, mas que a recompensa da chegada nos transforma em seres diferentes...pelo menos assim é nos cães!

Humildade:

Toda esta estória de Castanho e Sorridente é verdadeira. Qualquer parecença com figuras ou acontecimentos reais não é mera coincidência, são simplesmente aqueles acasos de que a vida é fertil e a que urge estar atento.
Pouco a pouco, observando dois meros cães vadios, sem pedigree nem pretensões para alem do desfrute da vida e da companhia de cada um, aprendi que, muitas vezes é preciso saber olhar para baixo. Aprendi que toda a obra da criação, se nos apresenta como um todo e que cada criatura nos pode ensinar uma lição.
Com estes Amigos aprendi a falar e a ler, a crescer como ser humano, mesmo tendo como professores dois cães vadios, que nada mais têm para oferecer que sorrisos e abanares de cauda. Aprendi que a minha condição de ser superior se perde na imensidão da inferioridade destes dois cães, quando observada de perto.
Acredito que Castanho e Sorridente têm cumprido a sua missão com nobreza e lealdade.
Muitas outras lições me têm ensinado mas que guardo para mim por não saber colocar em palavras escritas essas emoções.
Hoje já não habito a mesma casa nem partilho o jardim mas uma coisa tenho como certo: os cães também sorriem e choram, os cães também perdoam e se amam! No seu prolongado abanar de cauda, como quem sacode as agruras da vida.

segunda-feira, agosto 20, 2007

Testamento

Quando eu morrer, que vou de certo morrer,
Eu que morto caminho, nas incertas estradas do querer,
Quero ser recordado por aquele que ao impossível foi amando
Quero ser lembrado como o rei vagabundo que um dia
ousou desejar conquistar o reino da paixão.

Quero ser queimado morto, como o fui em vida.
Que minhas cinzas inundem as ondas do mar onde vivo, fiz amor.
Que seja a minha última ilusão, essa de ser uma Fénix renascida
Após perdida no vulcão de um amor impossivelmente possível.

Que seja meu ultimo sopro para lhe segredar.
Que seja meu derradeiro olhar para a ver.
Que em seu peito seja aconchegado e finalmente transportado
para o outro lado da vida.

Carta a um filho não nascido

Filho,

Escrevo-te estas linhas que talvez nunca vás ler ou compreender. Eu próprio tenho dificuldade em as entender.

Não nasceste fisicamente mas resides já no lugar da alma a ti reservado, nesse lugar chamado desejo que acalento. Sabes, filho, eu, este teu inexistente pai que te ama prova assim que o querer dar-te forma não é somente privilégio de mulher. Sou homem e o meu instinto, o amor que dentro de mim existe, e a ti é dedicado, há muito que cresceu, que te gerou.

Imaginei a noticia da tua chegada como a mais bela das revelações, sonhei os dias a ver-te crescer no seio daquela que tinha sido escolhida para te dar corpo. Para seres a forma visível de um amor, que não sendo perfeito (que nada na vida o é...) era puro, genuíno e grande. Um amor que, como uma semente, seria regado, cuidado, mesmo que, por vezes o tempo fosse adverso.

Contigo iríamos percorrer caminhos, ensinar-te o nome das coisas, ler-te poesia, ensinar-te a ser Homem a ser Pessoa. Com todos os meus defeitos mas com toda a minha dedicação. Contigo, a tua irmã e a tua mãe seriamos a luz que iluminaria os troços de trevas que a vida, por vezes nos traz.

Tudo isto foi por mim, desejado, sonhado e visto. Mas confesso que cometi o pecado do egoísmo. Imaginei para ti a mais bela das mães, a mais radiosa das mulheres que jamais amei. O meu amor por ti teria de ser reflexo desse outro amor. Foi magnânimo na escolha! Fui humilhado na derrota!

Hoje, filho, existes somente na gravidez da minha memória imaginada, enquanto aquela que desejava para nossa companheira de aventuras (e se a vida é uma aventura que irias adorar), partiu acossada com o medo de não ser feliz (em segredo te digo que o seria, se bem que em cada rosa existem espinhos). Sei que tive as minhas culpas, mas sei também que faltou amor, faltou sonhar, que a injustiça fez a sua mossa.

Filho, não quero, contudo, que penses que a culpa foi dela. Não, foi nossa! Não soubemos esquecer o que haveria para esquecer e lembrar, viver, os momentos bons que construímos. Perdemos a calma, talvez a esperança e hoje, nada mais sou que teu companheiro solitário na memória da vida. Foi minha por ter sonhado sonhos que somente aos deuses estão destinados...

Filho, talvez nunca vás ler estas linhas de lamento, talvez não passes de um sonho de grandeza como o foi tua mãe. Mas, ambos, tu e ela, serão para sempre parte indísociavel de mim. Um e outro caminharam de mão dada, nos recantos vazios da minha humana existência.

Um beijo
Teu pai.

terça-feira, agosto 14, 2007

Partida sem retorno


Ontem li que amar é a alma que muda de casa.
Finalmente entendi porque me sinto por dentro tão vazio.

Minha alma partiu e quando ao seu destino chegou,
Nada mais encontrou que portas fechadas.
Costas voltadas e risos de desdém.

Hoje, mais que a morada, que minha alma busca,
Procuro um porto onde me possa deleitar da jornada.
Hoje, mais que o conforto de um abraço,
Procuro a simples companhia de alguém humano,
Onde, finalmente minha alma perdida possa habitar.

Cada lugar para onde olho,
tem a forma mansa do teu corpo!